ENTREVISTA: A ARTE DA CHARCUTARIA NO BRASIL – PARTE 2

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Para Navarro, é preciso elevar a qualidade e oferta dos produtos por meio de ensino e campanhas

Por Patrick Parmigiani em 23/02/2021

 

A entrevista exclusiva com o mestre charcuteiro Edson Navarro continua em sua segunda e última parte. Navarro é sócio-fundador da Curato Charcutaria Artesanal, primeira escola especializada em ensino nesta área no país, e presidente da Associação Paulista de Charcutaria Artesanal (Apac). Em pauta nesta segunda parte: matéria-prima suína disponível no Brasil, nova lei federal para concessão do Selo Arte e muito mais. A primeira parte da entrevista pode ser acessada aqui.

CarneTec: Enquanto na Europa há uma grande variedade de produtos cárneos nas gôndolas, no Brasil ficamos limitados aos campeões de vendas, com pouco espaço para inovação. Há esforços da indústria frigorífica para mudar esse quadro?

Edson Navarro: Entendo que o panorama da charcutaria industrial tem feito algumas pequenas mudanças na linha de produtos que encontramos em supermercados, mas longe do desejado. Vemos poucas linhas de produtos de uma categoria mais premium, digamos. Como vivemos uma fase de pré-descobrimento da charcutaria, penso que não há público suficiente para absorver charcutaria de alta qualidade e, talvez por este motivo, não vemos uma variação de produtos nas gôndolas de supermercados, a não ser os importados.

O mercado de charcutaria sofisticada é um mercado de nicho. É um público de nível mais exigente, pessoas que já viajaram para a Europa, descendentes de europeus ou gente ligada à alta gastronomia. Sabem diferenciar produtos de alta qualidade e valorizam este tipo de produto. Para se ter uma ideia, só na Itália temos mais de 700 variações de salames, entre industriais, regionais e artesanais. Se contarmos os produtos de outros países, como Espanha, França, Portugal e outros, passamos de milhares de produtos diferentes.

Mudando o eixo da conversa para a outra ponta da cadeia produtiva, há no Brasil variedade de matéria-prima suína (em termos de raças, tipos de criações) para atender os charcuteiros artesanais?

Infelizmente não. O brasileiro é expert em carne bovina. Hoje é comum você conversar com alguém em um churrasco e ouvir as pessoas comentando sobre raças bovinas, como red ou black angus, nelore, etc. Conhecem os cortes que hoje têm nomes difíceis como flat iron, brisket... Agora, quando o assunto é suíno, as pessoas sequer sabem o que é um corte copa. Quando se fala em raça então piorou... uma das raças mais conhecidas na charcutaria é o duroc. Pouquíssimas pessoas conhecem essa raça ou qualquer outra, como as mais criadas aqui no Brasil, que são landrace e large white.

Temos diversos problemas para encontrar matéria-prima para charcutaria, pois a raça e a qualidade da carne influenciam diretamente as características finais do produto. A carne suína disponível que encontramos na maior parte dos frigoríficos é carne para o consumidor final. Aquele que vai preparar a carne frita ou assada. Essa carne tem características que só nos atrapalham. É magra, os cortes são pequenos e, em sua maioria, não servem para fabricar charcutaria de boa qualidade.

O problema todo começa com a raça, depois o manejo inadequado gera estresse animal e altera o pH da carne. Os animais são criados sob rígido controle de alimentação para não terem muita gordura e são abatidos com baixo peso (média de 80 kg). A verdade é que, ao longo dos anos, alteramos a genética do animal e hoje as raças estão mais fracas. Os animais adoecem mais facilmente e têm de receber antibióticos com certa frequência. A combinação de todos esses fatores gera uma matéria-prima ruim para charcutaria.

Nós precisamos de animais com peso acima de 200 kg, ricos em gordura intramuscular e de raças boas. Uma peça de presunto cru pronta para consumo pesa em média uns 10 kg. Isso significa que a peça in natura deveria ter, no mínimo, 20 kg, pois a perda de líquido é de aproximadamente 50%.

Vamos pensar que para fabricar um presunto cru temos que aguardar, no mínimo, um ano para secagem da peça. Se trabalharmos com matéria-prima inadequada, foi um ano perdido, bem como todo o dinheiro investido. Hoje, no Brasil, temos uma raríssima oferta de porcos de raça e peso adequados para fabricação de charcutaria de boa qualidade. E os preços são em média o triplo do valor do porco comercial. Tudo isso inviabiliza a produção do micro e pequeno produtor de charcutaria.

Como um apaixonado pelo ofício da charcutaria, quais são os seus sonhos e qual é o papel de cada um para fomentar o setor?

Minha missão é, sem dúvida nenhuma, difundir a arte da charcutaria no Brasil. Elevar a qualidade e oferta dos produtos por meio do ensino e campanhas para que um dia a gente tenha orgulho do que produzimos aqui no país. Hoje, temos cervejas e queijos artesanais ganhando prêmios no exterior, mas a charcutaria ainda está engatinhando. Quero que a gente também concorra lá fora com os nossos produtos! Ainda precisamos de muito apoio para que isso aconteça.

Há três anos fundei a Associação Paulista de Charcutaria Artesanal (Apac) com o objetivo de difundir o nosso trabalho e proporcionar uma experiência diferente ao público consumidor. É um trabalho voluntário, sem patrocínio (por hora) e independente. Muito esforço tem sido empregado para que haja mais engajamento, mas ainda somos poucos.

Com relação ao papel de cada um, penso que o governo ainda fez pouco com relação ao apoio ao pequeno produtor [charcuteiro]. Faltam muito incentivo e flexibilização de leis. Os pesquisadores deveriam se envolver mais também com nossa causa, mas entendo que isto não seria uma prioridade para eles neste momento. As grandes empresas poderiam se beneficiar e muito do nosso trabalho, pois antes de mais nada somos também pesquisadores, estudiosos e temos testado muita coisa nova em nossos laboratórios artesanais. Tanto o consumidor quanto os órgãos citados acima só irão se envolver pra valer quando esse assunto estiver mais difundido no país e esta é a minha e a nossa missão como associação.

Desde 1º de dezembro de 2020, está em vigor a Instrução Normativa nº 61 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que estabelece o regulamento para o enquadramento dos produtos cárneos artesanais para concessão do Selo Arte. O que mudou com a nova lei? Essa IN atende plenamente às demandas do setor?

Outro assunto polêmico... Até onde eu sei, a lei do Selo Arte irá atender somente os produtores que já possuem algum tipo de selo de inspeção. No caso de SP, seriam o Serviço de Inspeção Municipal (SIM) ou Serviço de Inspeção Estadual (Sisp). Isso já limitaria diversos pequenos e médios produtores que não possuem o selo de inspeção pela complexidade de exigências impostas, principalmente quando se trata de infraestrutura física. No estado de SP, por exemplo, ainda não foram definidas as regras e, neste caso, não temos nenhum produto por aqui que leva o Selo Arte. Alguns outros estados já estão mais adiantados, mas ainda temos pouquíssimas opções de produto com o selo.

A lei tem alguns tópicos bastante difíceis de entender. Por exemplo, para conseguir o selo o produto deve possuir características regionais, mas quando falamos de produtos de charcutaria brasileira, não temos quase nada aqui que tenha esta "característica regional". Não temos tradição de charcutaria no país. Em sua maioria, os produtos são feitos com as características de produtos europeus.

Enfim, novamente precisaríamos de um melhor entendimento das autoridades para com essa nova geração de micro e pequenos produtores. Somos uma geração que pode se autodenominar de "charcuteiros urbanos". Muitos de nós produzem dentro da cidade e utilizamos matéria-prima já inspecionada pelos órgãos sanitários. Não criamos porcos e nem pretendemos fazê-lo. Nosso tipo de estrutura de fabricação é muito similar a uma cozinha industrial. Um espaço pequeno, limpo, que obedece a fluxo e às Boas Práticas de Fabricação.

Apesar das dificuldades, você está otimista quanto a 2021? Há mercado para todos os paladares e bolsos?

Sim, penso que esse mercado é muito promissor e as oportunidades só tendem a crescer! Estamos bastante otimistas com 2021 e com a crescente demanda por produtos de melhor qualidade.

Qual é a mensagem ou o convite que o sr. faz aos leitores de CarneTec?

Antes de mais nada, gostaria de agradecer a oportunidade de expor meu ponto de vista e avaliação de cenários atuais. Parabenizá-los pela iniciativa de ouvir os pequenos e médios produtores também.

Convido todos a conhecer o trabalho da Curato Charcutaria – www.curato.com.br. Nas redes sociais: @curatocharcutaria

A Associação Paulista de Charcutaria Artesanal (Apac) – https://www.apaccharcutaria.com/ e nas redes: @asspac

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